Verso e Prosa

A importância do sagrado

Quase nada para mim é sagrado: esporte, política, religião, gosto musical e por a vai.

Isto aumenta em muito o risco que corro e incorro de ofender aqueles que guardam algum respeito ao que lhe é caro.

Para variar um pouco, estive do outro lado do muro no show de Stanley Jordan, praguejando aqueles que insistiam em ficar falando durante o show. Fiz uma mental note para nunca mais ficar contando piadas durante missas…

No dia a dia, alguns hábitos sagrados podem ser estorvo, mas podem ser muito úteis, como o hábito (arcaico, em tempos digitais) de transferir telefones para a agenda nova no final de ano.


Dentre os meus poucos hábitos sagrados, nada supera em santidade este mandamento:

Não deixarás o cinema antes do fim do filme.


Só o desobedeci 2 vezes, uma assistindo, de novo, História Sem Fim 2. Saí depois que a mocinha, a que estava ao meu lado, não a do filme, não correspondeu às minhas investidas.

A segunda, num Almodóvar, mas desta vez, o pecado valeu a pena, e olhe que era um Almodóvar.

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Ontem, ouvi Stanley Jordan tocar Eleanor Rigby.

Talvez um título meio longo, mas já diz tudo. Não tenho mais palavras.

Por algum motivo, ao longo do show, vinham trechos de um texto, que reconheci mais tarde como sendo de Caetano :

Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: caetano, venha ver o preto que você gosta. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo.

Era como se se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma benção, adensasse sua beleza.

Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta.” do livro “Verdade Tropical” de Caetano Veloso


Devo ter me identificado com alegria dele existir e a descoberta do que ele fez com a música.

O único ponto negativo do show, aqui em São Carlos, foi a profunda falta de educação de parte da platéia, que não parou de falar o tempo todo.
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As coisas: olhar outro

Ele passa e olha através do vidro. Sei que me deseja. Nada o impede. Em 5 minutos poderia estar em seus olhos. Em 5 minutos poderia suavizar o mundo para ele. Mas não, ele prefere seguir. Prefere ? O que o amarra ? Por que deixa o sol franzir sua testa ?

Já quase vai, mas me olha. Se me tens, de mim se esquece, me torna satélite do seu ser. Mantido por uma atração invisível. Alguns movimentos se imprimem e ficam e repetem-se mesmo na minha momentânea ausência.

Mas num instante, fujo, num ciúme de outra atenção, num lapso bêbado, numa alegria que o leva a outro lugar, deixada para trás, recuso-me a gritar.

Assim, não mais estaremos juntos. Esta escolha nunca será minha. Se vai nada faço, se volta aceito.

Mas, nesta ausência, ganho importância, pouco se importa comigo, mas como pude escapa-lo, que deficiência sua não o deixou manter domínio sobre a mais inerte das coisas, como deixou fugir quem tem pernas para prender ? Como salvar o mundo se nisto não se conserta ? Como ter outras sabendo que um dia irá também perde-las, a mim, de novo.

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A Espantosa Realidade Das Cousas

Fernando Pessoa

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro

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Maravilhas da burocracia ( e da Internet )

Uma amiga faz um convite para o aniversário dela e estipula que faltas só serão toleradas mediante a apresentação do formulário D-37. Muito mais tolerante que eu, que repasso diretamente ao capeta o nome dos faltosos.

Estando distante e impossibilitado de comparecer, fui no Google procurar o tal formulário. Não acho que o formulário ao lado sirva, mas uma das mais de 400 mil páginas encontrada talvez tenha a resposta.
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As Coisas: Caminhos

Aqui me puseram, não de maneira pensada ou premeditada. Aqui estou porque lá não servia. E lá estava desde sempre. Tudo mudou e aqui permaneci.
Por capricho, preferia estar um pouco mais à frente, um pouco mais cheio de luz, um pouco mais no fluxo das gentes.

Capricho, pois aquele que não firma sua posição, é expelido da luz e do fluxo, lenta e inexoravelmente às sombras.

Mas nem todos seguem os caminhos traçados. E foi assim que ela pisou em mim. Não reagi, mantive-me inerte à pressão. Meu chão cedeu um pouco, ferindo-se para acomodar a minha resistência ao mudar.


Sentindo, voltou ao caminho, mas não a mesma. Seu corpo espelhava o seu contato comigo. Não fora direto, ainda que me apresente nú para a vida, ela cerca-se de camadas. Ainda assim, este contato lembrava nela a existência de algo. O inerte lembrando da existência da carne. O inchaço reclamando sangue. O esquecido posto em vida pelo imóvel. Primeiro passo que deu para dar adeus a si e começar a viver.

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A vida em tempo de novela

Neste esporte nacional que é assistir novelas, sempre me pareceram estranhos aqueles momentos “3 anos depois…” No entanto, alguns filmes também usam este tipo de expediente narrativo, mas neles, o uso não me parece pouco natural.

Para uma amiga, que me alertou para a questão, a vida é assim mesmo, com um tempo de mudar e um tempo de permanecer, com a breve tempestade entre longas calmarias, estas iguais em constância e duração, mas muitas vezes difentes na essência, transformada pela tormenta.

Mas se a vida é assim, por que estranhar a calmaria na novela ? Talvez, por mostrar muitas vidas, muitas estórias, o lapso de tempo na novela exige que todas elas cheguem e saiam da calmaria em sincronia. Num filme, a narrativa, via de regra, é uma só, sendo assim mais factível a pausa. Exceto, talvez num filme de Robert Altman.

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Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cizenta.

Melancolias, mercadorias, espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam pra casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


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Discurso Mestrado

Discurso de Titulação – Mestrado em Regulação da Indústria de Energia – UNIFACS – 30 de Maio de 2003

Há algum tempo, assisti uma palestra, talvez seja melhor dizer discurso, de um dirigente de uma agência reguladora de um grande país da América do Sul. Como não foram poucos os representantes de agências que participaram da formação da nossa turma, posso ficar tranqüilo que a identidade do palestrante será preservada. Nesta palestra, dirigida aos funcionários da agência, foi traçado um perfil do regulador. Era tão fantástica a criatura descrita, que eu não seria capaz de reproduzir nem um quinto do tal discurso.

Estes seres perfeitos, capazes de habitar apenas no Olimpo, ou quem sabe, Brasília, deveriam, simultaneamente preocupar-se com os aspectos técnicos, econômicos, legais, sociais, ambientais, financeiros e culturais dos problemas enfrentados. Sempre agradando a gregos e troianos, consumidores e concessionários. Isto para não falar na conduta pessoal, pois eles deveriam ser ausentes de vícios, incapazes de cometer erros.


Tudo seria perfeito naquela tarde de sol no Olimpo, se não estivessem estes semi-deuses ocupados da tarefa de regular a vida de todos nós, pobres mortais. Me pareceu muito errado e estranho que estes seres perfeitos fossem capazes de regular mercados e relações sociais que são muitas vezes imperfeitas, quase sempre desiguais e algumas vezes, mas até do que deveriam ser, injustas. Relações que são antes de tudo Mutáveis.

A confirmação desta minha suspeita ocorreu algum tempo depois, quando já estava numa aula do Mestrado em Regulação da Indústria de Energia. Nesta aula, um dos moradores do Olimpo, a convite de um de nossos professores, falava de o quanto seria oportuno que empresas de todo o país, passassem a apresentar suas faturas de forma padronizada, provavelmente em preto e branco, cheia de códigos. Assim, seria mais fácil, para ele e seus técnicos analisar as mesmas, quando necessário. Estamos falando em interferir na rotina de milhões de consumidores, de impedir inovações, como, por exemplo, colocar uma estória em quadrinho educativa, ou usar cores que agradem aquela região, para facilitar a vida de meia dúzia de técnicos. Se este pensamento se aplica a um detalhe como este, o que dizer de outras questões ?

Mas hoje, felizmente, estamos aqui para a titulação não de meia dúzia de técnicos, mas de 12 seres humanos, logo seremos 14, completos com suas qualidades e defeitos. E para ficar nas qualidades, já que tivemos mais de 2 anos para conhecer os defeitos uns dos outros, falo na que é para mim e como já foi dito aqui, a maior qualidade desta turma e deste curso, desde a sua concepção, que é a sua diversidade.

Se podemos casar megabyte com megawatt, queda de tensão com alínea segunda, petróleo e seqüestro de carbono, é porque somos um grupo composto de arquiteto, economistas, muitos engenheiros eletricistas, analista de sistemas, químicos industriais, engenheiro químico e até engenheiro naval. Certa vez, conversando com Dr. Afonso Henriques, engenheiro eletricista, doutor em engenharia elétrica, na época diretor da ANEEL, disse-lhe que havia muitos engenheiros da diretoria da agência. Para o meu espanto, até ele concordou.

E foi através da correlação de forças desta turma toda que formamos um time capaz, cada um a seu tempo, de observar cada um dos aspectos necessários à hercúlea tarefa da regulação. E olhe que os trabalhos foram mais que os apenas 12 do Hércules original. Falamos desde protocolo de Kyoto até termodinâmica e achamos algo ou até muita coisa no meio do caminho.

Trabalhos estes pedidos por professores tão diversos como nós mesmos. Temos desde a seriedade amiga de Paulo Rocha e suas temíveis equações de balanço de poço até a gargalhada e o humor britânico de Osvaldo Soliano.

Tivemos também relutantes moradores do Olimpo, como é o caso do nosso Tanure, que sempre que pode volta a esta cidade, para renovar as idéias, as suas, mas principalmente, as nossas. Professores como a professora Olívia, que com todo carinho buscou nivelar o conhecimento de uma turma de origem tão diversa.

Ou ainda, o nosso professor de direito, Honorato, advogado, que ao contrário de todas as nossas expectativas, e como vocês puderam ver, era um dos mais brincalhões, e ouso dizer, dos mais gaiatos, e, também por isto, um dos mais queridos.

E deste caldeirão, que começou como turma, teve que virar time, eis que surge uma equipe, que continua unida, sob este teto. Isto é possível, pela visão dos polivalentes James e André, e hoje orquestrado pelo onipresente Ricardo e sua equipe : Andréia, Carol, Roberta, Letícia. Hoje, mais da metade dos que estão recebendo seus títulos trabalham na Universidade Salvador, pesquisando e ensinando, sabendo utilizar as habilidades mútuas e a trabalhar juntos, dando sentido e uso ao termo colegas.

Colegas que junto comigo recebem o diploma hoje, colegas como Normando e Ana Cristina que logo estarão recebendo os seus, e colegas como o líder de nossa turma, Jorge Ramalho, que por um motivo ou outro não terminaram o mestrado, mas que espero ver de volta nesta casa. A eles, obrigado pela companhia neste processo, e todos vocês, muito obrigado pela atenção.

Roberto Pinho, Mestre em Regulação da Indústria de Energia.

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As coisas – Jorge Luis Borges

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.

versão original: aqui
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