Verso e Prosa

O acolhimento do espaço

O acolhimento do espaço

Retiram-se as paredes e, pouco a pouco, a alma tímida como um pé livre do sapato apertado vai aventurando-se pela liberdade assustadora.

Irrestrita, expande-se pelo deserto de pessoas e de comodidades. alguns poucos, movem-se em silêncio, destino e alegrias comuns, desconhecidos de uma vida inteira. A beleza monumental em toda exuberância de um poder sereno os tornando únicos e unos e felizes.

O silêncio disponível quebrado pela necessidade de comunicar. onde antes estava a voz que buscava tão somente soterrar o barulho da cidade, onipresente e opressor, agora vem a voz que conecta e parece dizer num sorriso: olha, esta é a minha humanidade e eu a compartilho contigo.

As águas são frias, o calor traz o conforto de uma cafeína sublimemente extraída. Para tudo, enfim, a resposta de um corpo esquecido na cacofonia da vida. Novas células que lá sempre estiveram, referências que nos projetam e que devemos ultrapassar*.

A transposição do tempo em que levamos a nós e uns aos outros trás em si cada passo necessário. na realidade de trespassar distâncias por meios próprios, a verdade de não estarmos sós – lá onde o espaço para o acolhimento se faz, a nós por nós presenteado.

Roberto de Pinho

* “O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar” – Fernanda Montenegro recitando Simone Beauvoir

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Sede

O coração seco ruma em direção ao mar.
no caminho, nuvens seguem em sentido contrario
Tão melhor que chegar à Caladan da infância
seria ver chegar a chuva que transforma a terra alta
Muito maior a alegria de um mundo que sorri, que
o prazer mesquinho de banhar-se em meio a sedentos.

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As Coisas: espaço vazio

Passava quase todo dia por lá. Não havia escolha: este era o caminho mais curto. Não passar por lá era reconhecer a importância do lugar, da memória referenciada daquilo que poderia ter sido.

O lugar era duplamente irreal. Ela nunca morara lá. A janela marcava o lugar apontado em uma informação desencontrada. Alí fixara residência apenas o objeto imaginado da sua paixão nunca alcançada.

Depois, conhecera o verdadeiro endereço, o verdadeiro amor, a verdadeira mulher, e, enfim, a verdadeira dor e desilusão.

Mas naquela janela, aberta para o verde onde cresce a esperança¹, sobrevivia o peso do amor maior que nunca conheceria.

Roberto Pinho

¹”aberta para o verde onde cresce a esperança”: Thiago de Mello, 1964. Estatuto do homem – ato institucional permanente.
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Retidão e Dúvida

René Magritte, The Son of Man, 1964, Restored by Shimon D. Yanow

Sua vida era o teatro. Decidiu que iria perfeitamente desempenhar o papel que acreditava dele ser esperado. Ao longos dos anos foi ampliando o tempo dedicado à personagem, aos poucos abandonando outras possibilidades.

O cabelo reto, a gravata em paralelo às riscas da camisa, as palavras extraídas dos clássicos. Toda e qualquer criação era ofensa aos autores, aqueles outros, aqueles anteriores, da geração que tudo explicara e resolvera. Aqueles do tempo dos mistérios e das razões que não saberemos nunca, pois éramos, lá, meramente crianças, filhos esquecidos de gigantes.

O papel perfeito completa-se na audiência perfeita, e, à medida em que cada fio de cabelo embranquece e encaixa-se no lugar determinado, mais seleta torna-se a platéia. Um a um saem os assistentes, alienados por um espetáculo que não lhes diz respeito.

Até que, no monólogo triunfal final, resta apenas um na platéia, que já não pode aplaudir ou vaiar, que já não está lá, que já não pode dizer:

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Sargento Getúlio, Twitter e a pasmaceira neste blog

Este ano cometi um erro: li Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro. Pulei a leitura no ensino médio. Sempre com manias de grandeza, resolvi ler Viva o povo brasileiro, que nunca terminei.

Agora, Sargento Getúlio mata toda uma família de posts. Todas as vozes interiores que posso pensar são inúteis. A voz do Sargento é, assim, definitiva.

Já aqueles posts que resistem ao tiroteio do sargento, morrem na perspectiva do Twitter. No passado (A.T.), um post surgia com uma ideia, uma frase. Como escrever uma única frase em blog é coisa pobre, ficava na gaveta engordando, esperando a disposição e disponibilidade para lhe atrelar um corpo.

Agora paira a sombra do twitter: mando logo para o twitter (que não uso para escritos) ou espero a cria engordar? mas é válido criar um texto que é, em última análise, mero coadjuvante da frase principal, se há agora ferramenta em que soltar algumas poucas letras não é considerada ofensa?

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Mercedes Sosa

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The Birds


Andando aqui perto de casa, um passarinho, pouco menor do que um pombo, me atacou, duas vezes. Nem chegou perto de machucar, mas que foi um susto foi.
Vai ver que ele ouviu os boatos de que vão fazer uma nova versão do filme de Hitchcock, e estava ensaiando….

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Art


“There are no guarantees that if you work hard enough, or are talented enough, that you will be successful, be able to support yourself, or importantly, make a meaningful contribution to others. But in the meantime, if you are an artist, the art just comes – weather you like it or not- because you cannot stop it.” Jessica Todd Harper

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Prata e Cristal

Junta-os e observa. Coloca em frente um objeto que conheces pouco. Maravilha-se com o reflexo.

Entende que em outras eras a técnica era pouca, mas a engenhosidade fazia-se evidente naquilo que era possível. Que o material nobre, condenado a repetir, transcende e faz cópia infiel de um mundo falho, que torna perfeito.

Percebe a suavidade da curvatura. Olha-o de viés. Transforma espelho em janela. Vê, com um brilho nos olhos, um mundo vasto e belo. Persegue a imagem projetada.

Abraça, por fim, quem faz real um amor verdadeiro.



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As mentiras que nos salvam

Se você não acredita no bom selvagem, se crê que todo ato, perverso ou altruísta esta igualmente ancorado no ganho pessoal, acredita também que a defesa de princípios prospera apenas como justificativa a uma luta pelo poder.

Mas o efeito colateral de toda ideia defendida é que as instituições formadas segundo estas ideias devem vivê-las ou não se sustentam. Os filhos crescem tomando como real o mito criado por seus pais.

Fazendeiros escravocratas defenderam a democracia na sua luta contra o colonizador, mas tempos mais tarde se viram obrigados a libertar os escravos, contestados pelos menos ideias de igualdade, fraternidade e liberdade, com alguma ajuda de uma economia em transformação.

No lento caminhar da historia, perecem os indivíduos e ficam os efeitos das suas imagens.

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