Todo avião, desde um Embraer Ipanema 203 a um Boeing 777 é capaz de voar mesmo que perca todos os seus propulsores. Por curto período, são até capazes de ganhar ou velocidade ou altitude consumindo a energia potencial acumulada.
Este modelo talvez possa explicar o comportamento da produção científica nacional que tem registrado aumento de volume a despeito da redução no investimento público em pesquisa e desenvolvimento. Em valores corrigidos, eles caíram de quase R$ 53 bilhões em 2013, maior valor desde o início da série, para pouco mais de R$ 45 bilhões, uma queda de mais de 14% em termos reais. No entanto, no mesmo período observamos a produção científica indexada nacional saltar de pouco mais de 60 mil artigos anuais para quase 74 mil, um crescimento de mais de 22%.
Para explicar este aparente paradoxo, devemos lembrar que os processos da ciência são de longa duração e que a publicação de artigos em um par de meses, como vemos agora na mobilização da base científica em resposta à covid-19 são encontrados apenas em circunstâncias excepcionais ou em nichos. Só para a publicação, uma vez que um trabalho esteja concluído e tenha sido submetido, a mediana do tempo necessário até a publicação é de mais de 4 meses, considerando que seja aceito[2]. Projetos de doutorado, elemento importante para a produção científica nacional, tem uma duração esperada de 4 anos. Na solução do paradoxo, uma componente seria a maturação de investimentos anteriores. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento exigem tempo e constância. No continuado aumento da produção científica observada até o momento, não se descarta ainda alguma influência neste comportamento de um ganho de eficiência, medida em termos de volume da produção científica em relação ao investimento realizado.
Com isto em mente e examinando a evolução da participação do Brasil na produção científica mundial, vemos uma tendência de diminuição de ritmo de crescimento. Em 2019, a participação no Brasil já regrediu, o que não ocorria desde 2005, outro único ano negativo da série. Na nossa analogia, seria como uma aeronave, que vinha subindo com boa potência de motor, e que passa a receber menos combustível, e vai pouco a pouco reduzindo o ritmo da subida e sendo passada para trás por outras aeronaves. Já observamos em termos relativos o momento em que ela para de subir e começa a queda.
Contrastando as Figuras 1 e 4, podemos enxergar agora comportamentos que são compatíveis considerando os períodos antes e após o pico dos investimentos em 2013: tendência de crescimento transformada em desaceleração.
Neste ponto é importante examinar o comportamento recente do financiamento a fim de determinar se a expectativa é continuação da desaceleração ou se teremos novo impulso em direção ao crescimento. Para aproximar os dispêndios públicos recentes, uma vez que a série publicada só vai até o ano de 2017, podemos considerar os investimentos federais por funções e subfunções relacionadas à Pesquisa e ao Desenvolvimento, cujos dados estão disponíveis no portal Portal da Transparência da Controladoria-Geral da União (CGU). Aqui, as notícias não são boas. Tomadas a função 19 — Ciência e Tecnologia, e as subfunções 364 — Ensino Superior, 571 — Desenvolvimento Científico, 572 — Desenvolvimento Tecnológico e Engenharia, e 573 — Difusão do Conhecimento Científico e Tecnológico, vemos que os valores investidos em 2019 representaram 98,5% do valor de 2017, em termos constantes.
Na composição do investimento público nacional, a estimativa da parcela dos orçamentos das instituições de ensino superior que é dedicada às atividades de pesquisa e desenvolvimento representa cerca de um terço (32% em 2017) do total do investimento nacional em P&D e quase 60% dos investimentos públicos. No nosso avião, as instituições de ensino superior formariam boa parte das asas, fornecendo sustentação aos esforços. Assim sendo, perspectivas de cortes nos sistemas estaduais e federais de ensino superior tem não apenas impacto direto na educação como podem ser catastróficas para a ciência e tecnologia do país. É esta infraestrutura que garante o voo de planador em tempos de vacas magras.
Para 2020, o orçamento previsto para o ministério de ciência, tecnologia e inovações, à época conjunto com Comunicações, foi 15% menor que aquele de 2019[5]. Mesmo os investimentos extraordinários para enfrentamento da covid-19 estão aquém do observado em outros países, segundo levantamento de grupo do IPEA :
“Os recursos aplicados pelo governo brasileiro representam apenas 1,8% do orçamento anual dedicado a pesquisas e inovação. O esforço de outros países foi muito maior, alcançando 4% nos EUA, 11% no Reino Unido e 12% na Alemanha.”[6]
Para 2021, o orçamento específico de ciência e tecnologia prevê uma queda nominal de 27,7%, caindo de R$ 3,78 bilhões em 2020 para R$ 2,735 bilhões em 2021. Em educação, os valores passam de R$ 142,836 bilhões em 2020 para R$ 144,538, um ganho nominal de 1,2%[7]. Até o momento, no entanto, o IPCA acumulado de 2020 é de 0,46%[8]. Portanto, em termos reais, a proposta representa uma retração também para o orçamento da educação, lembrando que o crescimento orgânico de gastos já afeta a capacidade de dedicação à pesquisa. Se os cortes na educação são como furos nas asas, os cortes previstos de 33% no INPE cortam o acesso a satélites e informações climáticas do combalido planador científico, que segue em voo cego[9].
Sem potência, sustentado apenas pela habilidade de pesquisadoras e pesquisadores no manche, a queda se dá sem muito ruído. No meio do caminho, perdem-se espaços duramente conquistados gravidade acima, perdem-se pesquisadoras e pesquisadores que mudam de atividade ou país, ou que nem mesmo chegam a embarcar. Mas não podemos nos enganar, ainda que escapemos de stalls e quedas em parafuso mais dramáticas, o pouso será desastroso e se dará em terreno pestilento e árido. Enquanto vamos sendo superados e ultrapassados por outras nações, ficamos nós sem capacidade de manobra e sem o instrumento que nos deu régua e compasso, capaz de nos livrar de pandemias e do obscurantismo.
Fontes de dados e referências
[1]http://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/detalhe/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_3.html acesso em 3 de setembro de 2020
[2]Nature 530, 148–151 (11 February 2016) doi:10.1038/530148a
[3]http://www.portaltransparencia.gov.br/download-de-dados/despesas-execucao acesso em 3 de setembro de 2020
[4]http://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/detalhe/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_3.html acesso em 3 de setembro de 2020
[5]https://jornal.usp.br/universidade/politicas-cientificas/mesmo-blindado-orcamento-da-ciencia-ja-nasce-contingenciado-para-2020/
[6]https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/05/baixo-investimento-em-inovacao-deixa-brasil-despreparado-para-enfrentar-novo-coronavirus-diz-ipea.shtml
[7]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/31/orcamento-governo-propoe-manter-gastos-com-educacao-superiores-aos-de-defesa-em-2021.ghtml (erro de digitação no percentual corrigido em 01/jun/2021, estava anteriormente 0,1%)
[8]Julho/2020
[9]https://pt.wikipedia.org/wiki/Santos-Dumont_Demoiselle#/media/Ficheiro:Santos_Dumont_Demoiselle.jpg
Notas e observações
- Todos os dados e informações apresentados são oriundos de fontes públicas;
- Este texto é escrito em caráter estritamente pessoal e não reflete necessariamente a opinião de quaisquer organizações ou instituições;
- Correção pelo INPC para valores de julho de 2020 , tomando mês 7 de cada ano como referência;
- Descarta a influência do investimento privado na produção científica;
- Para 2018 e 2019, toma o comportamento do dispêndio federal como representativo do comportamento do dispêndio público;
- Para 2021, movimento considera o total da educação e não a subfunção 364.