Ciência Brasileira: voando em pane seca?

Todo avião, desde um Embraer Ipanema 203 a um Boeing 777 é capaz de voar mesmo que perca todos os seus propulsores. Por curto período, são até capazes de ganhar ou velocidade ou altitude consumindo a energia potencial acumulada.

Este modelo talvez possa explicar o comportamento da produção científica nacional que tem registrado aumento de volume a despeito da redução no investimento público em pesquisa e desenvolvimento. Em valores corrigidos, eles caíram de quase R$ 53 bilhões em 2013, maior valor desde o início da série, para pouco mais de R$ 45 bilhões, uma queda de mais de 14% em termos reais. No entanto, no mesmo período observamos a produção científica indexada nacional saltar de pouco mais de 60 mil artigos anuais para quase 74 mil, um crescimento de mais de 22%.

Fig. 1 Brasil: Dispêndio público em pesquisa e desenvolvimento (P&D), em valores constantes, corrigidos por INPC para valores de julho de 2020, 2000–2017. Elaboração própria sobre dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Tabela 2.1.3[1]
Fig. 2 Número de artigos brasileiros publicados em periódicos científicos indexados pela Scopus, 2000–2019 Fonte: SCImago. (2007). SJR SCImago Journal & Country Rank. Acesso em 16/07/2020, https://www.scimagojr.com/countrysearch.php?country=br Dados compilados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Tabela 5.5
Fig. 3 Percentual do Brasil em relação ao Mundo em Número de artigos brasileiros publicados em periódicos científicos indexados pela Scopus, 2000–2019 Fonte: SCImago. (2007). SJR SCImago Journal & Country Rank. Acesso em 16/07/2020, https://www.scimagojr.com/countrysearch.php?country=br Dados compilados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Tabela 5.5

Para explicar este aparente paradoxo, devemos lembrar que os processos da ciência são de longa duração e que a publicação de artigos em um par de meses, como vemos agora na mobilização da base científica em resposta à covid-19 são encontrados apenas em circunstâncias excepcionais ou em nichos. Só para a publicação, uma vez que um trabalho esteja concluído e tenha sido submetido, a mediana do tempo necessário até a publicação é de mais de 4 meses, considerando que seja aceito[2]. Projetos de doutorado, elemento importante para a produção científica nacional, tem uma duração esperada de 4 anos. Na solução do paradoxo, uma componente seria a maturação de investimentos anteriores. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento exigem tempo e constância. No continuado aumento da produção científica observada até o momento, não se descarta ainda alguma influência neste comportamento de um ganho de eficiência, medida em termos de volume da produção científica em relação ao investimento realizado.

Com isto em mente e examinando a evolução da participação do Brasil na produção científica mundial, vemos uma tendência de diminuição de ritmo de crescimento. Em 2019, a participação no Brasil já regrediu, o que não ocorria desde 2005, outro único ano negativo da série. Na nossa analogia, seria como uma aeronave, que vinha subindo com boa potência de motor, e que passa a receber menos combustível, e vai pouco a pouco reduzindo o ritmo da subida e sendo passada para trás por outras aeronaves. Já observamos em termos relativos o momento em que ela para de subir e começa a queda.

Fig 4. Variação no percentual do Brasil em relação ao Mundo em Número de artigos brasileiros publicados em periódicos científicos indexados pela Scopus, 2000–2019 Cálculo próprio sobre dados compilados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Tabela 5.5, Fonte: SCImago. (2007). SJR SCImago Journal & Country Rank. Acesso em 16/07/2020, https://www.scimagojr.com/countrysearch.php?country=br

Contrastando as Figuras 1 e 4, podemos enxergar agora comportamentos que são compatíveis considerando os períodos antes e após o pico dos investimentos em 2013: tendência de crescimento transformada em desaceleração.

Neste ponto é importante examinar o comportamento recente do financiamento a fim de determinar se a expectativa é continuação da desaceleração ou se teremos novo impulso em direção ao crescimento. Para aproximar os dispêndios públicos recentes, uma vez que a série publicada só vai até o ano de 2017, podemos considerar os investimentos federais por funções e subfunções relacionadas à Pesquisa e ao Desenvolvimento, cujos dados estão disponíveis no portal Portal da Transparência da Controladoria-Geral da União (CGU). Aqui, as notícias não são boas. Tomadas a função 19 — Ciência e Tecnologia, e as subfunções 364 — Ensino Superior, 571 — Desenvolvimento Científico, 572 — Desenvolvimento Tecnológico e Engenharia, e 573 — Difusão do Conhecimento Científico e Tecnológico, vemos que os valores investidos em 2019 representaram 98,5% do valor de 2017, em termos constantes.

Fig 5. Execução da despesa de funções e subfunções em valores relativos ao apurado para 2017, corrigidos por INPC para valores julho de 2020 a partir de dados do portal da transparência[3]. Compilação própria.

Na composição do investimento público nacional, a estimativa da parcela dos orçamentos das instituições de ensino superior que é dedicada às atividades de pesquisa e desenvolvimento representa cerca de um terço (32% em 2017) do total do investimento nacional em P&D e quase 60% dos investimentos públicos. No nosso avião, as instituições de ensino superior formariam boa parte das asas, fornecendo sustentação aos esforços. Assim sendo, perspectivas de cortes nos sistemas estaduais e federais de ensino superior tem não apenas impacto direto na educação como podem ser catastróficas para a ciência e tecnologia do país. É esta infraestrutura que garante o voo de planador em tempos de vacas magras.

Fig 6. Brasil: Dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D), em valores correntes por setor institucional, 2017. Elaboração própria sobre dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Tabela 2.1.3[4]

Para 2020, o orçamento previsto para o ministério de ciência, tecnologia e inovações, à época conjunto com Comunicações, foi 15% menor que aquele de 2019[5]. Mesmo os investimentos extraordinários para enfrentamento da covid-19 estão aquém do observado em outros países, segundo levantamento de grupo do IPEA :

“Os recursos aplicados pelo governo brasileiro representam apenas 1,8% do orçamento anual dedicado a pesquisas e inovação. O esforço de outros países foi muito maior, alcançando 4% nos EUA, 11% no Reino Unido e 12% na Alemanha.”[6]

Para 2021, o orçamento específico de ciência e tecnologia prevê uma queda nominal de 27,7%, caindo de R$ 3,78 bilhões em 2020 para R$ 2,735 bilhões em 2021. Em educação, os valores passam de R$ 142,836 bilhões em 2020 para R$ 144,538, um ganho nominal de 1,2%[7]. Até o momento, no entanto, o IPCA acumulado de 2020 é de 0,46%[8]. Portanto, em termos reais, a proposta representa uma retração também para o orçamento da educação, lembrando que o crescimento orgânico de gastos já afeta a capacidade de dedicação à pesquisa. Se os cortes na educação são como furos nas asas, os cortes previstos de 33% no INPE cortam o acesso a satélites e informações climáticas do combalido planador científico, que segue em voo cego[9].

Sem potência, sustentado apenas pela habilidade de pesquisadoras e pesquisadores no manche, a queda se dá sem muito ruído. No meio do caminho, perdem-se espaços duramente conquistados gravidade acima, perdem-se pesquisadoras e pesquisadores que mudam de atividade ou país, ou que nem mesmo chegam a embarcar. Mas não podemos nos enganar, ainda que escapemos de stalls e quedas em parafuso mais dramáticas, o pouso será desastroso e se dará em terreno pestilento e árido. Enquanto vamos sendo superados e ultrapassados por outras nações, ficamos nós sem capacidade de manobra e sem o instrumento que nos deu régua e compasso, capaz de nos livrar de pandemias e do obscurantismo.

Fontes de dados e referências

[1]http://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/detalhe/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_3.html acesso em 3 de setembro de 2020
[2]Nature 530, 148–151 (11 February 2016) doi:10.1038/530148a
[3]http://www.portaltransparencia.gov.br/download-de-dados/despesas-execucao acesso em 3 de setembro de 2020
[4]http://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/detalhe/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_3.html acesso em 3 de setembro de 2020
[5]https://jornal.usp.br/universidade/politicas-cientificas/mesmo-blindado-orcamento-da-ciencia-ja-nasce-contingenciado-para-2020/
[6]https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/05/baixo-investimento-em-inovacao-deixa-brasil-despreparado-para-enfrentar-novo-coronavirus-diz-ipea.shtml
[7]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/31/orcamento-governo-propoe-manter-gastos-com-educacao-superiores-aos-de-defesa-em-2021.ghtml (erro de digitação no percentual corrigido em 01/jun/2021, estava anteriormente 0,1%)
[8]Julho/2020
[9]https://pt.wikipedia.org/wiki/Santos-Dumont_Demoiselle#/media/Ficheiro:Santos_Dumont_Demoiselle.jpg

Notas e observações

  • Todos os dados e informações apresentados são oriundos de fontes públicas;
  • Este texto é escrito em caráter estritamente pessoal e não reflete necessariamente a opinião de quaisquer organizações ou instituições;
  • Correção pelo INPC para valores de julho de 2020 , tomando mês 7 de cada ano como referência;
  • Descarta a influência do investimento privado na produção científica;
  • Para 2018 e 2019, toma o comportamento do dispêndio federal como representativo do comportamento do dispêndio público;
  • Para 2021, movimento considera o total da educação e não a subfunção 364.

Posted by Roberto de Pinho

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