A Santíssima Trindade materializou-se em humanidade. Depois da inviabilidade do Sistema Solar, nos dividimos em três arcas, cada qual com destino a uma próxima estrela. Cada qual com seus modelos e soluções. Não nos falamos, não trocamos mensagens. Nem mesmo sabemos se ainda são. Se um sistema falhar e exterminar uma das arcas, este sistema já não estará em uso nas demais. Se alguem, em uma das arcas tem alguma idéia brilhante, nós não saberemos e assim não correremos os riscos de sermos mortos por ela. Como aconteceu na velha Terra.
Estruturas, algoritmos, mercados e governo. Tudo diferente. Só não sei como seriam os demais. Todos os participantes do Projeto com acesso a informações de mais de uma arca fizeram votos e ficaram pra trás, aguardando a morte entre anéis de Saturno e monolitos de Júpiter.
Não conheço os demais, mas sempre acreditei na perfeição do nosso sistema. Seres superiores, especialmente talhados para a tarefa de dirigir nossa vida , geneticamente modificados para serem olhos e ouvidos e quase nada mais, vivem numa nave que nos escolta e nos observa. Sem contato conosco ou prazeres, a tudo tem acesso, tudo podem ver e escutar, e assim , regulam as nossas atividades. a produção de alimentos, o controle da qualidade do ar, o escalonamento de tarefas, as horas de sono permitidas, tudo isto cabe ao conselho supremo, que determina e nos deixa tranqüilos. A cada dia, pode-se viver com a certeza de que o pouco que dormi não foi para atender a interesses mesquinhos, dormi pouco pois isto é o melhor, cientificamente determinado, para a sobrevivência da nossa nobre arca.
Mas, de sua câmara, incapaz de sentir cheiros ou toque ou frio ou calor, eternamente sustentado e alimentado pelo liquido que o envolve, um supremo tremeu. Não era a primeira vez que ele deveria direcionar um ser humano para a morte. O espaço é um ambiente hostil. Estamos a 5 anos luz de casa e sem peças de reposição. Morre um, mas salvam-se os demais. A morte seria terrível, exposição ao de mais tóxico que nossa arca carrega. A beleza para sempre destruída. O seu tremor não fora pudor em relação à morte. Não faz parte do seu trabalho tê-lo. Cabe a ele decidir o melhor a fazer, imparcial, perfeito, eterno. E tremia por se saber, pela primeira vez, incapaz. Tremia de amor por aquela beleza de formas perfeitas. Conhecia cada canto dela. Tinha visto cada um dos seus banhos, conhecia todos os seus pelos. Sonhava com seu riso, morria com seu choro. E morta ela está, mas seu corpo preservado pelo frio, velada pelos grandes olhos do supremo. Ele, intocável, sobreviverá em sua nave até o fim dos seus dias, velando a perfeição congelada.
De nós, resto apenas eu. Os demais se foram de morte violenta, em nome de um amor que não era seu. Esquecidos por aquele que mais os conhecia.
Eis a tarefa que o homem sabe fazer melhor ultimamente: suicídio.